O sol saindo e ainda se punha a dormir, um
desacato aos outros brasileiros da segunda-feira.
Coloca a mão sobre a mesinha ao lado a ouvir as horas no despertador que não
funciona há três dias. Nada funciona. A água escorre dos cabelos crespos para
as costas, depois desce e segue o rumo do suor. Segue a voz que vem da cozinha preparando o
café quente.
Sobe para o seu quarto e continua a
procurar algo no dia que funcione.
Calçando o par de tênis velho, fica com a visão aprisionada, mesmo sem
notar, no quadro bordado pela vó pendurado acima da cama, lembrando do trabalho
da faculdade para entregar no dia seguinte. Não são tantas páginas para ler, ou
melhor, tocá-las suavemtente para ler. Vai dar tempo, vai funcionar. Quando ergue as pontas do cadarço. Alinha.
Faz um volta. Entrelaça. E finalmente, puxa. Cá está o formoso laço bem feito,todo
pomposo. O garoto parte para o outro calçado. Os mesmos movimentos, mas com um
certo desleixo, já que o pensamento se subverteu na profecia de mais um dia sem
muito caso e mais descasos.
O trajeto de toda manhã, conhecido
muito bem pela bengala. O perigo tangenciando esses movimentos por causa de um
laço desajeitado, colocando em risco o passo dos dois calçados. Um impecável e
outro desleixado. Um que funciona e outro que não serve para isso. O garoto
toma o ônibus e encontra uma pessoa prestativa que lhe cede o assento. Quantas
pessoas se espremendo em uma só condução.Quantas pessoas? Como os fios de um
laço de cadarço, todos juntos e bem alinhados, mas de que adianta se esse
cadarço for o desleixado? O que não funciona e põe em risco o trabalho todo bem
prestado do outro cadarço ao lado.
Põe a mão para fora da janela e sente
as gotas da chuva de dez horas.A velha ao lado estranha a demora que o garoto
leva segurando a chuva. Bem que essa chuva podia ser fina e vagarosa, que
levasse o que não cumpre sua função embora. Desce do ônibus e vai logo pisando
onde não devia, em uma poça de espelho no qual seu reflexo invisível brandava sem
muita definição. Aperta o passo, em um compasso ensaiado com o tênis encharcado
para desgosto das outras pessoas. Sala adentro, seguido por pegadas enlameadas,
todas elas disfarçadas.Pela voz elegante, afetuosa e quase quente, o goroto
percebeu que quem lhe atendia era um daqueles caras com a cara de garçom.
Provavelmente alto, de ombros largos e todo alinhado.Mal sabia ele que o cara
desviava o dinheiro da agência de empregos. Eram quase onze horas quando ele
pediu que o garoto sentasse do outro lado da mesinha caindo as pedaços de tão
velha. Foram-se CPF, cartão de identidade e um currículo. Depois um até breve,
uma promessa de ligação e uma advertência sobre o cadarço mal amarrado.
O garoto saiu da sala apagando as
pegadas que ele mesmo fez na chegada. Na calçada, aproveitou para se agachar,
ajeitando o mal laço. Quando de súbito, sentiu um joelho contra suas costelas e
ouviu um baque desengonçado a cair no chão. Tateou a pessoa que lhe
atropelara e sentiu sua face de dor que
não poderia se prolongar, devido a pressa. O moço não era muito gentil e nem
pediu desculpas pelo esbarrão. Só juntou as velhas folhas que estava lendo,
balbuciou alguma coisa sobre falta de dinheiro e seguiu o em linha reta quase
como se nada tivesse acontecido.Mas não sabia que o moço entorpecido lutava com
contas do orfanato que ele coordenava que estava passando por dificuldades
financeiras. O garoto ficou lá, esperando o próximo caso inusitado. Depois
levantou, colocou os fones que estavam gritando Sex Pistols e continuou sua
jornada com a bengala.
Resolveu não ir para a faculdade
naquele dia, queria fantasiar outros casos inusitados.Aproveitou o caminho
diferente que resolveu tomar para deslizar a mão nas construções molhadas pela
chuva, ouvir o barulho do anel tilintando nas grades de ferro e sentir o cheiro
agradável da grama banhada recentemente. Ah, a chuva! Ela realmente não levou o
que não funcionava, mas isso não a culpava ao ponto das pessoas correrem com
medo dela. Tão apressadas, se esqueceram de tomar o banho que a chuva dá por
dentro. Lembrou que de manhã esperava que nada no dia funcionasse, mas a chuva
de verão lhe fez editar o pensamento ao ponto de esquecer o remorso que sentia
por pensar que não vivia. As outras pessoas, em suas atividades, quase como um
nado sincronizado, sempre de passo apertado. Como um cadarço, o pensamento
errôneo de que estavam vivendo passava por elas que eram os buracos do calçado.
Só que esses buracos não foram causados pelas pisadas em falso, foram feitos
justamente para receber esse cadarço, ou melhor, o pensamento citado. Então,
por uma visão racional, estão funcionando com eficiência.
E de noite, o garoto repousando os
cabelos no travesseiro, com a mão na nuca, fez uma revisão filosófica do dia
ocorrido. E levou em consideração duas pessoas notáveis, o cara com cara de
garçom[aparentemente] e o moço do esbarrão. O cara seria o seu laço pomposo,
cheio de nove-horas, o que funcionava e alertava do outro cadarço bastardo. Enquanto
esse cara todo alinhado, performático e bem passado era cruzado por esse
pensamento-cadarço. O moço seria o laço desleixado, quase deslaçado. Mas esse
não funcionava, felizmente.Era atrapalhado, desengonçado, mas tinha a verdade
dentro de si. Não passava por ele o
pensamento-cadarço de viver não alcançando
o que se é viver.
O verdadeiro risco do tombo desenfreado
não está no cadarço desleixado, está no outro,o impecável, que de tanto
pomporismo se enrosca em si mesmo.Valsando em versos decassílabos de sonetos e
que não respeita os versos livres .Acaba por ter que servir único e
exclusivamente a ele mesmo, fazendo até Narciso se roer de ciúmes.’’Sem glória,
sem fé’’. O que se manifesta é que o perigo dos passos enroscados está nesse
verso todo arranjado, manipulado e estável do cadarço bem amarrado.
segunda-feira, 28 de maio de 2012
De veneta
Se é um daqueles com força só nos braços.
A desequilibrada por vezes se tornou Amélia, mas ao contrário da de fato, maquinou a revanche e fez parecer que foi precipitada.
A desequilibrada não escolhe os dias em que se vai viver, ou correr, ou pecar, ou nadar.
Os dias é que a escolhem.
E por aqui não se dizem irresponsáveis, se dizem vivas. E por aqui não se dizem putas, a não ser que escolham.
A desequilibrada não vive em gangorra, como você sabe.
Não busca um amor, busca amar. Amar bem forte, que fique escrito. Com os desejos limpos, mas também os sujos.
Não é boneca inflável, é outro homem.Mas nem sempre é certa de si.
Tem voz, tem vez, é fato. Mas é cheia de vontades sem pé nem cabeça.
Ora, francamente. Alguém já viu pé ou cabeça na paixão?
E é nessa estação que se nomeia desequilibrada. Pois sem paixão, só há Amélia.
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