segunda-feira, 28 de maio de 2012

Cadarço

  O sol saindo e ainda se punha a dormir, um desacato aos outros brasileiros da segunda-feira.
Coloca a mão sobre a mesinha ao lado a ouvir as horas no despertador que não funciona há três dias. Nada funciona. A água escorre dos cabelos crespos para as costas, depois desce e segue o rumo do suor.  Segue a voz que vem da cozinha preparando o café quente.
  Sobe para o seu quarto e continua a procurar algo no dia que funcione.  Calçando o par de tênis velho, fica com a visão aprisionada, mesmo sem notar, no quadro bordado pela vó pendurado acima da cama, lembrando do trabalho da faculdade para entregar no dia seguinte. Não são tantas páginas para ler, ou melhor, tocá-las suavemtente para ler. Vai dar tempo, vai funcionar.  Quando ergue as pontas do cadarço. Alinha. Faz um volta. Entrelaça. E finalmente,  puxa. Cá está o formoso laço bem feito,todo pomposo. O garoto parte para o outro calçado. Os mesmos movimentos, mas com um certo desleixo, já que o pensamento se subverteu na profecia de mais um dia sem muito caso e mais descasos.
  O trajeto de toda manhã, conhecido muito bem pela bengala. O perigo tangenciando esses movimentos por causa de um laço desajeitado, colocando em risco o passo dos dois calçados. Um impecável e outro desleixado. Um que funciona e outro que não serve para isso. O garoto toma o ônibus e encontra uma pessoa prestativa que lhe cede o assento. Quantas pessoas se espremendo em uma só condução.Quantas pessoas? Como os fios de um laço de cadarço, todos juntos e bem alinhados, mas de que adianta se esse cadarço for o desleixado? O que não funciona e põe em risco o trabalho todo bem prestado do outro cadarço ao lado.
  Põe a mão para fora da janela e sente as gotas da chuva de dez horas.A velha ao lado estranha a demora que o garoto leva segurando a chuva. Bem que essa chuva podia ser fina e vagarosa, que levasse o que não cumpre sua função embora. Desce do ônibus e vai logo pisando onde não devia, em uma poça de espelho no qual seu reflexo invisível brandava sem muita definição. Aperta o passo, em um compasso ensaiado com o tênis encharcado para desgosto das outras pessoas. Sala adentro, seguido por pegadas enlameadas, todas elas disfarçadas.Pela voz elegante, afetuosa e quase quente, o goroto percebeu que quem lhe atendia era um daqueles caras com a cara de garçom. Provavelmente alto, de ombros largos e todo alinhado.Mal sabia ele que o cara desviava o dinheiro da agência de empregos. Eram quase onze horas quando ele pediu que o garoto sentasse do outro lado da mesinha caindo as pedaços de tão velha. Foram-se CPF, cartão de identidade e um currículo. Depois um até breve, uma promessa de ligação e uma advertência sobre o cadarço mal amarrado.
  O garoto saiu da sala apagando as pegadas que ele mesmo fez na chegada. Na calçada, aproveitou para se agachar, ajeitando o mal laço. Quando de súbito, sentiu um joelho contra suas costelas e ouviu um baque desengonçado a cair no chão. Tateou a pessoa que lhe atropelara  e sentiu sua face de dor que não poderia se prolongar, devido a pressa. O moço não era muito gentil e nem pediu desculpas pelo esbarrão. Só juntou as velhas folhas que estava lendo, balbuciou alguma coisa sobre falta de dinheiro e seguiu o em linha reta quase como se nada tivesse acontecido.Mas não sabia que o moço entorpecido lutava com contas do orfanato que ele coordenava que estava passando por dificuldades financeiras. O garoto ficou lá, esperando o próximo caso inusitado. Depois levantou, colocou os fones que estavam gritando Sex Pistols e continuou sua jornada com a bengala.
  Resolveu não ir para a faculdade naquele dia, queria fantasiar outros casos inusitados.Aproveitou o caminho diferente que resolveu tomar para deslizar a mão nas construções molhadas pela chuva, ouvir o barulho do anel tilintando nas grades de ferro e sentir o cheiro agradável da grama banhada recentemente. Ah, a chuva! Ela realmente não levou o que não funcionava, mas isso não a culpava ao ponto das pessoas correrem com medo dela. Tão apressadas, se esqueceram de tomar o banho que a chuva dá por dentro. Lembrou que de manhã esperava que nada no dia funcionasse, mas a chuva de verão lhe fez editar o pensamento ao ponto de esquecer o remorso que sentia por pensar que não vivia. As outras pessoas, em suas atividades, quase como um nado sincronizado, sempre de passo apertado. Como um cadarço, o pensamento errôneo de que estavam vivendo passava por elas que eram os buracos do calçado. Só que esses buracos não foram causados pelas pisadas em falso, foram feitos justamente para receber esse cadarço, ou melhor, o pensamento citado. Então, por uma visão racional, estão funcionando com eficiência.
  E de noite, o garoto repousando os cabelos no travesseiro, com a mão na nuca, fez uma revisão filosófica do dia ocorrido. E levou em consideração duas pessoas notáveis, o cara com cara de garçom[aparentemente] e o moço do esbarrão. O cara seria o seu laço pomposo, cheio de nove-horas, o que funcionava e alertava do outro cadarço bastardo. Enquanto esse cara todo alinhado, performático e bem passado era cruzado por esse pensamento-cadarço. O moço seria o laço desleixado, quase deslaçado. Mas esse não funcionava, felizmente.Era atrapalhado, desengonçado, mas tinha a verdade dentro de si.  Não passava por ele o pensamento-cadarço de viver  não alcançando o que se é viver.
  O verdadeiro risco do tombo desenfreado não está no cadarço desleixado, está no outro,o impecável, que de tanto pomporismo se enrosca em si mesmo.Valsando em versos decassílabos de sonetos e que não respeita os versos livres .Acaba por ter que servir único e exclusivamente a ele mesmo, fazendo até Narciso se roer de ciúmes.’’Sem glória, sem fé’’. O que se manifesta é que o perigo dos passos enroscados está nesse verso todo arranjado, manipulado e estável do cadarço bem amarrado.

De veneta


Se tiver que escolher entre uma desequilibrada e uma Amélia, escolha a segunda.
Se é um daqueles com força só nos braços.
A desequilibrada por vezes se tornou Amélia, mas ao contrário da de fato, maquinou a revanche e fez parecer que foi precipitada.
A desequilibrada não escolhe os dias em que se vai viver, ou correr, ou pecar, ou nadar.
Os dias é que a escolhem.
E por aqui não se dizem irresponsáveis, se dizem vivas. E por aqui não se dizem putas, a não ser que escolham.
A desequilibrada não vive em gangorra, como você sabe.
Não busca um amor, busca amar. Amar bem forte, que fique escrito. Com os desejos limpos, mas também os sujos.
Não é boneca inflável, é outro homem.Mas nem sempre é certa de si.
Tem voz, tem vez, é fato. Mas é cheia de vontades sem pé nem cabeça.
Ora, francamente. Alguém já viu pé ou cabeça na paixão?
E é nessa estação que se nomeia desequilibrada. Pois sem paixão, só há Amélia.