quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Janela Discreta

    Subia ao telhado para observar os cônjuges abraços de nove horas quando encontrou, no parapeito de uma janela, o resto de um cigarro recostado miseravelmente sobre os átomos de carbono incineráveis. A auréola vermelha de um batom misógino foi deixada, como que para mostrar que o esplendor não se faz sem dono.
    E ainda assim, Vando continuou a subir. Mas sabe? Não é que não existisse uma amostra de satisfação. Só não era cabível uma mulher amada que não pede sempre um pouco mais. Ele bem sabia que certas damas retribuem melhor do que defendem, mas Vando insistia em subir mais um pouco.
    Depois de um tempo de descanso, ao parar feito estátua pelo calafrio do abraço duro e lento de uma velha porta, nosso bom moço até pensou em voltar e deitar numa dessas cadeiras de balanço que te ninam. Espionar um pouco o curso das formigas rente a porta e estaria pronto para dormir.
    Mas, de alguma forma, se auto-contrabandear era um jeito bom de se sentir em casa. Vando, então, continuou a subir.
    Chegando ao telhado, o binóculos lhe era a extensão ocular que Deus lhe esquecera. Manejava aquele troço todo como o ovo de uma galinha, antes de ser quebrado. A partir daí Vando era Deus mítico, calculava cada diálogo, imaginava cada olhar, sentia na tez ressecada cada toque, até os não dados.
    Quando se sabe o momento mais feliz da vida de alguém ? Como admitir que a glória do outro é só o começo da sua ? O fato é que Vando nem se fazia ali, parado em cima do telhado, baixando o olhar para o calçado maltratado, esparramando alguns grãos de areia com o pé.
    Vando era a maciez da coxa da vizinha do nono andar, o doce feminino e pueril da mulher do sexto; era quando desce a curva no ombro damasco da que lava a roupa. Era o raiar rebatido na pele matinal, com todas aquelas manchas de travesseiro. Assim como era o espaldar do ombro masculino do que se espreguiçava; os cabelos da nuca, todos bem emparelhados, do já dormido. O relevo de um sinal na omoplata rígida de outro algum.
    Ele se fazia em todos juntos e em um por vez. Assumia a alma de amador e, ainda assim, começou a descer. Vando continuou a descer.